(p. 17) A primeira vez que Descartes expôs sua teoria da mente e, na verdade, sua metafísica em geral, foi no contexto de uma cativante narrativa pessoal, na qual descreve o desenvolvimento intelectual que seguiu o momentoso dia e noite na “sala quente como um forno”: Durante os nove anos seguintes, nada fiz além de vagar pelo mundo, tentando ser mais um espectador que um ator em todas as comédias que nele se desenrolam. Ao refletir em especial sobre os pontos, em qualquer assunto, que pudessem torná-lo suspeito e nos dar a ocasião de errar, permaneci desenterrando de minha mente quaisquer erros que pudessem ter antes resvalado para seu interior. Ao fazê-lo, não estava eu copiando os céticos, que duvidam apenas por duvidar e sempre fingem furtar-se a decisões. Pelo contrário, todo meu objetivo era chegar à certeza - pôr de lado a terra e a areia frouxas, de maneira a chegar à rocha ou à argila. Nisso, acho que fui bastante bem-sucedido.
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Assim termina a Parte Três do Discours de la méthode (Discurso do método), publicado anonimamente, em 1637. A passagem imediatamente seguinte, no início da Parte Quatro, é uma das mais famosas em toda a filosofia, contendo o célebre dito je pense, donc je suis - “Eu penso, portanto eu sou” - ou, mais próximo ao que Descartes queria dizer, “Eu estou pensando, portanto eu existo”. O Discurso foi traduzido para o latim sete anos depois (o latim, no XVII, ainda era a melhor maneira de atingir uma audiência internacional) e, nele, o dito aparece naquela que é talvez sua mais bem conhecida forma: Cogito ergo sum. O título completo do Discurso é “Discurso do método de corretamente conduzir a razão e procurar pela verdade nas ciências”, e uma chave para o “método” em questão é o uso deliberado por Descartes de técnicas (embora não da perspectiva filosófica) do ceticismo, levando a dúvida tão longe quanto esta fosse. O propósito é ver se existe alguma coisa que sobreviva à dúvida. Se sim, isso servirá de pedra fundamental para o novo edifício da ciência que Descartes está procurando construir. A primeira verdade que descobre, é claro, é o famoso Cogito - enquanto eu estiver pensando, devo existir -, e comentadores têm infindavelmente analisado e debatido o significado preciso do “ponto arquimediano” que Descartes propõe usar como suporte para dar início ao restante de seu sistema. Porém mais interessante para nossos propósitos é o movimento
que Descartes faz logo depois do Cogito, quando segue adiante para discutir a natureza de seu ser pensante, de cuja existência está tão seguro.
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