Cap. 1 Renda e produção. PIKETTY, Tomas. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Ediotra Intrínseca, 2014. (p. 48)

Renda e produção

No dia 16 de agosto de 2012, a polícia sul-africana interveio num conflito entre os trabalhadores da mina de platina de Marikana, perto de Joanesburgo,e os responsáveis pela exploração dos recursos, os acionistas da companhia Lonmin, cuja sede fica em Londres. As forças policiais atiraram nos grevistas com munição de verdade;no balanço, 34 mineradores mortos.1 Como é muito comum nesses casos, o foco do conflito era a questão salarial: os mineiros queriam que sua remuneração passasse de 500 para 1.000 euros por mês. Depois dos trágicos acontecimentos, a empresa propôs, por fim, um aumento de 75 euros mensais.2 (p. 48)

Esse episódio recente serve para nos lembrar, se é que isso é necessário,que a questão da repartição da produção entre a remuneração do trabalho e a do capital sempre constituiu a principal dimensão do conflito distributivo (p. 48)

Já nas sociedades tradicionais, a tensão entre proprietário e camponês, entre aquele que possuía a terra e aquele que a cultivava,entre aquele que recebia os lucros e aquele que os possibilitava, estava no cerne da desigualdade social e de todas as revoltas e rebeliões. (p. 48)

Será que o confronto entre capital e trabalho pertence ao passado, ou será ele um elemento-chave do século XXI? (p. 48)

A participação do capital pode alcançar níveis elevados: geralmente entre um quarto e a metade de todo o valor produzido.Contudo, às vezes ela chega a superar essa parcela nos setores que o utilizam de maneira mais intensiva, como a mineração.Quando há monopólios locais, a participação pode ser ainda maior. (p. 49)⭐

Esse argumento também merece ser analisado com mais calma. Levando em consideração todos esses elementos, qual seria o nível “correto” para a divisão entre capital e trabalho?Podemos ter certeza de que o “livre” funcionamento de uma economia de mercado, fundamentada na propriedade privada, conduz sempre e por toda parte a esse nível ótimo,como que a magia? (p. 50)

Como, numa sociedade ideal, se deve organizar a repartição entre a renda do trabalho e do capital e como se deve pensar sobre esse problema? (p. 50)

A divisão capital-trabalho no longo prazo: não tão estável (p. 50)

O que se sabe, exatamente, sobre a evolução distributiva entre capital e trabalho desde o século XVIII?

Durante muito tempo,a tese mais disseminada entre os economistas e repetida à exaustão nos livros acadêmicos era de que havia uma notável estabilidade na divisão da renda nacional entre capital e trabalho no longo prazo: em geral por volta de dois terços para o trabalho e um terço para o capital. (p. 50) Mas a realidade é bem mais complexa...

a tese de uma estabilidade completa da divisão capital-trabalho tem de levar em consideração o fato de que a própria natureza do capital se transformou radicalmente (do capital fundiário, baseado na propriedade da terra do século XVIII, ao capital imobiliário, industrial e financeiro do século XXI) e, sobretudo,a ideia muito disseminada entre os economistas de que o crescimento atual provém, em larga medida, do aumento do “capital humano”. (p. 51)

Os níveis muito altos de capitalização patrimonial que hoje observamos nos países ricos parecem ser explicados, antes de tudo,pela volta de um regime de crescimento baixo tanto da população quanto da produtividade — combinados com uma conjuntura política que favorece claramente o capital privado. (p. 51)

A noção de renda nacional (p. 52)

Por definição, a renda nacional mede o conjunto das rendas de que dispõem os residentes de um país ao longo de um ano, qualquer que seja a classificação jurídica dessa renda. (p. 52)

Renda Nacional= PIB - depreciação do capital + ou - renda líquida recebida ou transmitida para o exterior

Devemos logo salientar que esse tipo de desigualdade internacional pode gerar tensões políticas bastante fortes.Não éalgo trivial que um país trabalhe para outro e que lhe remeta parte relevante de sua produção sob a forma de dividendos e aluguéis. (p. 52-53) ⭐ ⭐ ⭐

Para que esse sistema possa sobreviver — ao menos até certo ponto —, quase sempre é preciso que haja uma relação de dominação política, como foi o caso na época do colonialismo,quando a Europa possuía boa parte do resto do mundo. (p 53)

Nesse estágio, é suficiente afirmar que a maior parte dos países, ricos ou emergentes, desfruta hoje de situações mais equilibradas do que às vezes se imagina. (p. 53)

Na França e nos Estados Unidos, na Alemanha e no Reino Unido, na China e no Brasil, no Japão e na Itália,a renda nacional não é muito diferente da produção interna — 1% ou 2% de distância, apenas.Dito de outro modo, em todos esses países o fluxo que entra e sai de lucros, juros, dividendos, aluguéis etc.é mais ou menos compensado pela entrada de receitas líquidas provenientes do exterior, ligeiramente positivas para os países ricos. (P. 53)

Ao contrário do que sugere um forte mito, a França não pertence aos fundos de pensão californianos ou ao Banco da China,ao menos não mais que os Estados Unidos são de propriedade dos investidores japoneses ou alemães. (p. 53)

A crença nisso é tão grande que a fantasia muitas vezes se sobrepõe à realidade.Hoje, a realidade é que a desigualdade do capital é mais doméstica do que internacional: ela opõe ricos e pobres dentro de cada país muito mais do que os países entre si.

Veremos também que o forte aumento das participações cruzadas entre países (cada um é, em grande medida, propriedade de todos os outros) pode, legitimamente,fazer com que eles se sintam destituídos, mesmo que suas posições líquidas de ativos sejam insignificantes. (p. 53)

Em suma, no âmbito de cada país, a renda nacional pode ser superior ou inferior à produção interna,dependendo se a renda que vem de fora é positiva ou negativa: (p.53)

Renda nacional = produção interna + renda líquida recebida do exterior (p. 53)

No âmbito mundial, a renda recebida e a remetida para o exterior se equilibram, de modo que, por definição,a renda é igual à produção: Renda mundial = produção mundial (p. 54)

toda a produção deve ser distribuída sob a forma de renda, de uma maneira ou de outra: seja como salários, honorários, gratificações e assim por diante, isto é,pagamentos aos trabalhadores e a outras pessoas que contribuíram para o processo produtivo (rendas do trabalho); ou como lucros, dividendos, juros, aluguéis, royalties etc., que representam o pagamento dos proprietários do capital usado na produção (rendas do capital). (p.54)

O que é o capital? (p. 54)

Renda nacional = renda do capital + renda do trabalho (p. 54)

No contexto deste livro, o capital é definido como o conjunto de ativos não humanos que podem ser adquiridos, vendidos e comprados em algum mercado. (p. 54)

Assim, o capital compreende, especificamente, o conjunto formado pelo capital imobiliário (imóveis, casas), utilizado para moradia,e pelo capital financeiro e profissional (edifícios e infraestrutura, equipamentos, máquinas, patentes etc.),usado pelas empresas e pela administração pública (p.54)

Há inúmeras razões para excluir o capital humano de nossa definição de capital.A mais óbvia é que ele não pode pertencer a outra pessoa, tampouco pode ser comprado e vendido num mercado, ao menos não de modo permanente.Isso constitui uma diferença essencial em relação às outras formas de capital. É claro que um indivíduo pode oferecer seus serviços sob algum tipo de contrato de trabalho.Contudo, em todos os sistemas jurídicos modernos, isso só pode ser feito em caráter temporário, com limitações no horário e na abrangência dos serviços prestados.Com exceção, é claro, dos regimes de escravidão, não é possível ter plena posse do capital humano de outra pessoa, nem de seus eventuais descendentes. (p. 54-55)

Mas, salvo esse caso muito particular e, a priori, encerrado, não há sentido algum em somar os valores do capital não humano e do capital humano.Essas duas formas de riqueza desempenharam, ao longo de toda a história, papéis fundamentais e complementares no processo de crescimento e de desenvolvimento econômico,e há de ser assim no século XXI (p. 54)

O capital não é um conceito imutável: ele reflete o estado de desenvolvimento e as relações sociais que regem uma sociedade. (p. 54)

Capital e riqueza (p. 54)

incluiremos todas essas formas de riqueza (terra, recursos naturais, etc) na definição de capital, o que não anulará nosso interesse em estudar as origens da riqueza e, em particular,a fronteira entre o que resulta da acumulação e o que advém da apropriação. (p. 55)

Segundo outras definições, deveríamos reservar a palavra “capital” para nos referir aos componentes da riqueza usados diretamente no processo de produção. (p. 55)

Todas as formas de capital sempre desempenharam um papel duplo, em parte como reserva de valor, em parte como fator de produção.Pareceu-nos, portanto, mais simples não impor distinções rígidas entre os conceitos de riqueza e de capital. (p. 55)

Por fim,para cada país a riqueza nacional pode ser decomposta entre o capital interno e no externo: (p. 58)

Em suma, definiremos “riqueza nacional” ou “capital nacional” como o valor total, a preços de mercado,de tudo que os residentes e o governo de um país possuem num determinado momento e que possa ser comprado e vendido em algum mercado.... subtraindo-se os passivos
financeiros (ou seja, todas as dívidas) (p. 57)

Riqueza nacional = riqueza privada + riqueza pública (p. 57)

A riqueza pública hoje está muito baixa na maioria dos países desenvolvidos (às vezes até negativa, quando a dívida pública é maior do que os ativos públicos),e veremos que a riqueza privada representa a quase totalidade da riqueza nacional em praticamente todos os países. No entanto, nem sempre foi assim;por isso, é preciso distinguir as duas noções de riqueza. (p. 57)

ncluímos, além disso, o capital “imaterial”, como, por exemplo, as patentes e outros direitos de propriedade intelectual,tratados como ativos não financeiros (se os indivíduos detêm diretamente as patentes) ou como ativos financeiros,quando as entidades privadas detêm ações de empresas que são proprietárias das patentes — o que, aliás, é o caso mais comum. (p. 57)

De modo geral, as várias formas de capital imaterial são levadas em conta por meio da capitalização das empresas no mercado de ações.Por exemplo, o valor de mercado de uma empresa depende, muitas vezes, de sua reputação e da reputação de suas marcas,de seus sistemas de informação e de suas formas de organização,dos investimentos materiais e imateriais que realizam para adquirir visibilidade e atratividade para o que produzem (bens e/ou serviços), além de depender, também,dos gastos em pesquisa e desenvolvimento etc (p. 57)

Riqueza nacional = capital nacional = capital interno + capital externo líquido (p. 58)

O capital interno representa o valor do estoque de capital (imobiliário, corporativo etc.) instalado no território do país em questão.O capital externo líquido — ou ativo externo líquido — mensura o balanço patrimonial do país em relação ao resto do mundo, ou seja,a diferença entre os ativos dos países estrangeiros que pertencem aos residentes do país em questão e os ativos desse país que os outros países possuem. (p. 58)

O capital interno representa o valor do estoque de capital (imobiliário, corporativo etc.) instalado no território do país em questão.O capital externo líquido — ou ativo externo líquido — mensura o balanço patrimonial do país em relação ao resto do mundo, ou seja,a diferença entre os ativos dos países estrangeiros que pertencem aos residentes do país em questão e os ativos desse país que os outros países possuem. (p. 58)

A razão capital / renda (p. 58)

A renda é um fluxo e corresponde à quantidade de bens produzidos e distribuídos ao longo de um determinado período (geralmente se usa o ano calendário como período de referência). (p. 59)

O capital é um estoque e corresponde à quantidade total de riqueza existente em um dado instante.Esse estoque resulta dos fluxos de renda apropriados ou acumulados ao longo dos anos anteriores. (p 59)

A maneira mais natural e útil de medir a importância do capital numa sociedade consiste em dividir o estoque de capital pelo fluxo anual de renda.Essa razão capital / renda será denominada β. (p. 59)

Hoje em dia, nos países desenvolvidos, a relação capital / renda em geral se situa entre cinco e seis e resulta quase unicamente do capital privado. (p. 59)

Há variações interessantes entre os países,tanto dentro quanto fora da Europa: a relação β é maior que seis no Japão e na Itália e menor que cinco nos Estados Unidos e na Alemanha;a riqueza pública é levemente positiva em certos países e ligeiramente negativa em outros; e assim por diante. (p.59)

Como acontece com todas as médias, essa renda média esconde enormes disparidades: na prática, muitas pessoas têm uma renda líquida bem inferior a 2.500 euros por mês, enquanto outras têm renda dezenas de vezes superior. (p. 59

A disparidade da renda resulta, em parte, da desigualdade da renda do trabalho e, em parte, da desigualdade ainda mais forte da renda do capital,que decorre da extrema concentração da riqueza. (p. 59)⭐

A renda nacional média significa apenas que,se pudéssemos distribuir para cada indivíduo de um determinado país o mesmo montante sem alterar o nível total da produção e da renda nacional,essa renda seria de 2.500 euros por mês. (p. 59)

Há pessoas que têm, inclusive, riqueza negativa. Isso ocorre quando os bens que possuem têm valor menor do que suas dívidas. (p. 60)

A relação capital / renda, medida para cada país, nada nos diz sobre a desigualdade que nele vigora.Contudo, a razão β mede a importância total do capital numa sociedade, e, portanto, sua análise constitui uma precondição fundamental para o estudo da desigualdade. (p. 60)

cabe destacar que o estoque de capital nos países desenvolvidos se divide em duas partes aproximadamente iguais: capital relacionado àhabitação e capital produtivo usado pelas empresas e pelo governo. (p. 60)

A primeira lei fundamental do capitalismo: α = r × β

A razão capital / rendaβ está diretamente ligada à participação da renda do capital na renda nacional, que denominaremos α,por meio da seguinte equação: (p. 60)

em que r é a taxa de remuneração (ou taxa de rendimento) média do capital.
Por exemplo, se β = 600% e r = 5%, então α = r × β = 30%

permite expressar de forma simples e transparente os três conceitos mais importantes para a análise do sistema capitalista: a relação capital / renda,a participação do capital na renda e a taxa de remuneração do capital. (p. 61)

Em todo caso, a taxa de remuneração do capital mensura aquilo que ele rende ao longo de um ano, qualquer que seja a forma jurídica da receita (lucros, aluguéis, dividendos, juros,roy alties, ganhos de capital etc.), e se expressa como uma porcentagem do capital investido. Trata-se, portanto, de uma noção mais abrangente do que o conceito de “taxa de lucro”14 e bem mais ampla do que “taxa de juros”,15 ainda que leve ambas em conta. (p. 61)

Em todos os países, as grandezas β, α e r variam bastante entre as empresas.Alguns setores são mais intensivos em uso de capital do que outros (o que gera menor rentabilidade pelo volume de capital investido a depender da produção em escala e outras variáveis como preço de mercado - comentário próprio) — a metalurgia ⭐ e a produção de energia são mais intensivas do que a indústria têxtil ou a alimentar,e a indústria é mais intensiva do que o setor de serviços. (p. 63)

onvém insistir que a lei α = r × β nada nos diz a respeito de como essas três grandezas são determinadas, nem, em particular,sobre como se determina a razão capital / renda em um país, que mede a intensidade capitalista de uma sociedade.Para avançar nessa direção, será necessário introduzir outros mecanismos e conceitos, especificamente a taxa de poupança, a taxa de investimento e a taxa de crescimento.Isso nos conduzirá à segunda lei fundamental do capitalismo, pela qual a razão β de um país é tanto maior quanto mais elevada for a taxa de poupança e menor for o crescimento. (p. 63)

Por agora, a lei α = r × β nos indica apenas que,


quaisquer que sejam as forças econômicas, sociais e políticas que influenciem a razão capital / renda β,a participação do capital α e a taxa de retorno r, essas três grandezas não podem ser fixadas de modo independente umas das outras.Conceitualmente, existem dois graus de liberdade, mas não três. (p. 64)

A contabilidade nacional: uma construção social em andamento (p. 64)

Como já mencionamos na Introdução, as primeiras tentativas de medir a renda nacional e o capital nacional remontam ao fim do século XVII e ao início do século XVIII. (p. 64)

Essas estimativas concernem tanto ao estoque de capital nacional quanto ao fluxo anual de renda nacional.Em particular, um dos primeiros objetivos desses estudos era calcular o valor total da terra, de longe a mais importante fonte de riqueza nas sociedades agrárias da época,todas dependentes do capital financeiro derivado da produção agrícola e do rendimento fundiário. (p. 64)

É interessante notar que os autores perseguiam com frequência um objetivo político bastante preciso, em geral sob a forma de um projeto de modernização fiscal. (p. 64)

a publicação em 1791 das estimativas contidas em Richesse territoriale du royaume de France


(Riqueza territorial do reino da França), por Lavoisier, que mapeou o ano de 1789.E, de fato, o sistema fiscal instituído, baseado no fim dos privilégios da nobreza e numa taxa sobre a propriedade da terra que abarcava o conjunto dessa riqueza,se inspirou muito em tais trabalhos, que foram amplamente utilizados para estimar as receitas dos novos impostos. (p. 65)

Todavia, foi sobretudo no século XIX que se multiplicaram as estimativas da riqueza nacional.Dos anos 1870 aos 1900, Robert Giffen atualizou regularmente os cálculos sobre o estoque de capital do Reino Unido,que ele comparou às estimativas feitas por outros autores nos anos 1800-1810, em particular por Colquhoun. (p. 65)

Giffen ficou maravilhado com o nível considerável que o capital industrial britânico havia alcançado e se surpreendeu com o montante de ativos externos de seu país adquiridos desdeas guerras napoleônicas, incomparavelmente mais altos do que toda a dívida pública gerada por essas mesmas guerras. (p. 65)

As estimativas da “fortuna nacional” e da “fortuna privada”publicadas na França na mesma época por Alfred de Foville e depois por Clément Colson trouxeram a mesma sensação de encantamento e admiração para esses autores diante da acumulaçãocapital privado substancial no século XIX. (p. 65)

Nos anos 1930- 1940, graças às melhorias das fontes estatísticas primárias, surgiram as primeiras séries anuais de renda nacional, remontando, de forma geral,até o início do século XX ou às últimas décadas do século XIX. Nos Estados Unidos, elas foram elaboradas por Kuznets e Kendrick; no Reino Unido, por Bowley e Clark;e, na França, por Dugé de Bernonville. (p. 65)

A partir dos anos 1940-1950, tratava-se, especialmente, de responder ao trauma da crise dos anos 1930,durante a qual os governos não dispunham de estimativas anuais confiáveis do nível de produção. (p. 66)

Era preciso, portanto,criar ferramentas estatísticas e políticas que permitissem guiar a atividade econômica e evitar que a catástrofe se reproduzisse — daí a insistência para que se elaborassem sériesanuais e, mais ainda, trimestrais sobre o fluxo da produção e da renda. (p. 66)

As agências estatísticas dos países desenvolvidos, em colaboração com os bancos centrais, passaram, assim,a elaborar e publicar séries anuais coerentes e sistemáticas sobre os estoques de ativos e passivos detidos por uns e outros,e não somente as séries de fluxo de renda e de produção. (p. 66)

Dessa breve história da contabilidade nacional resulta uma conclusão clara.As contas nacionais são uma construção social, em estado de constante evolução, refletindo sempre a preocupação de uma época. (p. 66)

Quando se diz que a renda nacional de um país é de 31.000 euros por habitante, é evidente que tal cifra, como todas as estatísticas econômicas e sociais, deve ser tratada como uma estimativa, uma construção,e não uma certeza matemática. Trata-se apenas da melhor mensuração de que dispomos. (p. 66)

As contas nacionais constituem a única tentativa


sistemática e coerente de analisar a atividade econômica de um país.Portanto, devem ser consideradas uma ferramenta útil de investigação, limitada e imperfeita, uma maneira de juntar e organizar dados muito díspares. (p. 66)

Além da ausência de perspectiva histórica, a outra grande limitação das contas nacionais oficiais é que elas se preocupam apenas com a construção de dados agregados e de médias,e não com o recorte da desigualdade. Outras fontes têm de ser mobilizadas para dividir a renda e a riqueza a fim de se estudar a desigualdade (esse é o objeto da Terceira Parte). (p. 67)

A divisão mundial da produção (p. 67)

Entre 1900 e 1980, a Europa e a América foram responsáveis por algo entre 70% e 80% da produção mundial de bens e de serviços,sinal de uma dominação econômica sem equivalentes sobre o resto do mundo. (p. 67)

ssa participação caiu sistematicamente a partir dos anos 1970-1980. Em 2010, chegou a 50% (cerca de um quarto para cada continente), nível semelhante ao de 1860.O mais provávelé que ela continue caindo, podendo retornar, ao longo do século XXI, a algo equivalente a 20-30%.Esse nível já vigorava no início do século XIX,e seria condizente com o peso da Europa e da América em relação à população mundial (p. 67) Ver gráfico 1.1 (p.68)

PIB por Habitante (desigualde) gráfico 1.3 ( P. 72)

Dito de outro modo, o avanço alcançado pela Europa e pela América ao longo da Revolução Industrial lhes permitiu, por muito tempo,ter um peso de duas a três vezes maior na produção do que na população mundial,simplesmente porque a produção por habitante era de duas a três vezes maior do que a média global. (p. 74)

Tudo leva a crer que essa fase de divergência da produção por habitante em escala mundial tenha terminado e que estejamos adentrando uma fase de convergência.Contudo, essa recuperação está longe do fim (ver Gráfico 1.3).Seria demasiado prematuro anunciar o término desse processo com precisão,sobretudo porque turbulências políticas e econômicas na China e em outras partes do mundo não podem ser descartadas. (p. 74)

Dos blocos continentais aos blocos regionais (p. 74)

Em particular, o peso econômico da Europa atingiu seu apogeu às vésperas da Segunda Guerra Mundial (perto de 50% do PIB global da época) e não parou de cair desde então,enquanto o peso dos Estados Unidos alcançou o pico nos anos 1950-1960 (cerca de 40% do PIB mundial). (p. 74)

Além disso, cada um dos dois continentes pode ser decomposto em dois subconjuntos muito desiguais: um centro hiperdesenvolvido e uma periferia modestamente desenvolvida.De maneira geral, é mais correto analisar a desigualdade mundial em termos de blocos regionais do que por blocos continentais. (p. 74)

A população mundial se aproximava dos sete bilhões de habitantes em 2012, e o PIB ficou um pouco acima dos 70 trilhões de euros,o que significa que o PIB por habitante se situava exatamente nos 10.000 euros. (p. 74)⭐

Se subtrairmos 10% dessa cifra a título de depreciação do capital e a dividirmos por doze,constatamos que a quantia equivale a uma renda média mensal de 760 euros por habitante, o que talvez fale por si. (p. 74)

A própria União Europeia é relativamente heterogênea, uma vez que compreende, de um lado,410 milhões de habitantes na antiga Europa Ocidental (dos quais três quartos estão nos cinco países mais populosos: Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Espanha),com um PIB médio de 31.000 euros, e, de outro, 130 milhões de habitantes do Leste Europeu, com um PIB médio da ordem de 16.000 euros,não muito diferente do bloco Rússia / Ucrânia (p. 75) ⭐

A América é igualmente dividida em dois conjuntos bem distintos de países, ainda mais desiguais do que o centro e a periferia europeia: o bloco Estados Unidos / Canadá,com 350 milhões de habitantes e 40.000 euros de PIB por habitante, e a América Latina, com 600 milhões de habitantes e 10.000 euros de PIB por habitante, exatamente a média mundial. (p. 75) ⭐

A África Subsaariana, com 900 milhões de habitantes e um PIB de apenas 1.800 bilhões de euros (1,8 trilhão, menor do que o PIB da França, de 2.000 bilhões ou 2 trilhões de euros), é a zona econômica mais pobre do mundo, com 2.000 euros de PIB por habitante. (p. 75) ⭐

ao passo que a China está melhor ainda: com 8.000 euros de PIB por habitante, a China de 2012 não se encontra muito distante da média mundial.O Japão tem um PIB por habitante equivalente ao dos países europeus mais ricos (em torno de 30.000 euros), mas sua população é tão pouco representativa na Ásia que ele não influencia em nada a média continental, muito
próxima do PIB por habitante chinês. (p. 75)

Tabela 1.1. A divisão do PIB munidal em 2012 (p. 76) ⭐

A desigualdade mundial: de 150 euros por mês a 3.000 euros por mês (p. 77)

Para resumir,a desigualdade mundial contrasta países cuja renda média por habitante é da ordem de 150-250 euros por mês (África Subsaariana e Índia) com países onde a renda média por habitantealcança um patamar entre 2.500- 3.000 euros por mês (Europa Ocidental, América do Norte, Japão) — ou seja, onde as pessoas ganham vinte vezes mais. (p. 77)

Essas ordens de grandeza são significativas e merecem ser guardadas na memória.É preciso salientar, todavia,que são afetadas por margens de erro significativas: é sempre muito mais difícil medir a desigualdade entre nações (ou entre épocas diferentes) do que dentro de um determinado país.(p. 77)

Nos países mais pobres, as correções introduzidas pelo uso das paridades do poder de compra são bem substanciais: tanto na África como na Ásia,os preços são cerca de duas vezes mais baixos do que nos países ricos,de modo que o PIB quase dobra de tamanho quando se passa da taxa de câmbio nominal para a paridade do poder de compra (p. 80)

Isso resulta, essencialmente, de preços mais baixos dos serviços e bens não transacionados nos mercados internacionais, mais fáceis de produzir nos países pobres,uma vez que são mais intensivos no uso da mão de obra pouco qualificada (fator de produção relativamente abundante nos países menos desenvolvidos) e menos dependentes do trabalhoqualificado e do capital (relativamente menos abundantes). (P. 80) ⭐

a participação dos países ricos (União Europeia, Estados Unidos / Canadá,Japão) na renda global alcança 46% em 2012 se usarmos a paridade do poder de compra, contra 57% se utilizarmos as taxas de câmbio nominais. (p. 83)

Contudo, em todo caso, isso em nada afeta as ordens de grandeza,tampouco influencia o fato de que a participação dos países ricos na renda global tem diminuído de forma sistemática desde os anos 1970-1980.Qualquer que seja a medida utilizada, o mundo parece ter entrado numa fase de convergência entre países ricos e pobres. )p. 83)

A divisão mundial da renda: mais desigual que a produção (p. 83)

A divisão mundial da renda costuma ser mais desigual do que a da produção,uma vez que os países com a produção por habitante mais alta também tendem a deter uma parte do capital de outros países e, portanto,a receber um fluxo positivo de renda do capital proveniente dos países para os quais a produção por habitante é mais baixa. (p. 83) ⭐ ⭐ ⭐

Ou seja, os países ricos são duplamente ricos: têm uma produção interna mais elevada e têm capital investido no exterior,o que lhes permite dispor de uma renda nacional maior do que a sua produção — para os países pobres, vale o contrário. (p. 83) ⭐

Por exemplo, todos os principais países desenvolvidos (Estados Unidos, Japão, Alemanha, França e Reino Unido) têm hoje uma renda nacional um pouco superior à sua produção interna. (p. 83)

a renda líquida proveniente do exterior é ligeiramente positiva e não provoca modificações radicais no nível de vida desses países: ela representa um montante de 1% a 2% da produção interna dos Estados Unidos, da França e do Reino Unido e de 2% a 3% da produção interna do Japão e da Alemanha. (p. 84)

Trata-se, ainda assim, de um complemento da renda significativo, sobretudo para esses dois últimos países, que,graças aos seus excedentes comerciais (sua posição superavitária no balanço de pagamentos), acumularam reservas importantes em relação ao resto do mundo nas últimas décadas,o que lhes garante, hoje, um rendimento considerável. (p. 84)

Deixando de lado os países mais ricos para examinar os blocos continentais, considerados em conjunto, é possível observar situações bem próximas do equilíbrio.Tanto na Europa como na América e na Ásia, os países mais ricos (em geral, situados no norte do continente) recebem um fluxo positivo de renda do capital,em parte compensado pelo fluxo que enviam para outros países (em geral, mais ao sul ou ao leste), de modo que, no âmbito continental,a renda nacional e a produção interna são quase iguais, com uma diferença de menos de 0,5%. (p. 84)

A única situação de desequilíbrio continental é a África, que pertence, estruturalmente, a outros continentes.Em termos práticos,de acordo com os balanços de pagamentos no nível mundial elaborados todos os anos desde 1970 pelas Nações Unidas e por outras organizações internacionais (Banco Mundial, FMI),a renda nacional de que dispõem os habitantes do continente africano ésistematicamente inferior a 5% da sua produção interna (a diferença excede 10% para certos países).33 Com uma participação do capital de 30% na produção, isso significa que quase 20% do capital africano está nas mãos de proprietários estrangeiros,como os acionistas londrinos das minas de platina de Marikana, que mencionamos no início do capítulo. (p. 84)

e voltarmos no tempo, constataremos desequilíbrios internacionais ainda mais marcantes.Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, a renda nacional do Reino Unido, principal investidor global, era 10% mais alta do que sua produção interna.A diferença superava os 5% na França, a segunda potência colonial e segundo investidor global, e se aproximava disso na Alemanha, cujo império colonial era insignificante,mas onde o desenvolvimento industrial permitia uma forte acumulação de créditos em relação ao resto do mundo.Uma parte desses investimentos britânicos, franceses e alemães era realizada em outros países europeus ou na América, e outra parte na Ásia e na África. (p. 84-85)

Quais forças favorecem a convergência entre países? (p. 85)

Se os países ricos estiverem tão cheios de poupança e de capital que estes já não servem para nada além de construir mais imóveis ou instalar mais uma máquina na fábrica (diz-se, nesse caso, que a “produtividade marginal” do capital, ou seja, a produção suplementar possibilitada por uma unidade adicional de capital, émuito baixa),pode ser mais eficaz que invistam uma parte desses recursos nos países pobres. (p. 85)

Dessa maneira, as nações ricas — ou ao menos os habitantes que detenham capital excedente — obterão uma taxa de retorno melhor,e os países pobres poderão reduzir o atraso na produtividade.Esse mecanismo, baseado na livre circulação dos fluxos de capitais e na equalização da produtividade marginal do capital no âmbito mundial, é,de acordo com a teoria econômica clássica, o fundamento do processo de convergência entre países e da redução progressiva da desigualdade ao longo da história,graças às forças do mercado e da concorrência. (p. 85) ⭐

Essa teoria otimista tem, entretanto, dois grandes defeitos.Em primeiro lugar, do ponto de vista estritamente lógico, esse mecanismo não garante de modo algum a convergência da renda por habitante no âmbito mundial. (p. 85) ⭐ ⭐

Na melhor das hipóteses, pode levar à convergência do produto por habitante — desde que haja a livre mobilidade de capital e, sobretudo,uma equalização completa dos níveis de qualificação da mão de obra e do capital humano entre países, o que não épouca coisa.(p. 85)

Em todo caso, essa convergência da produção não implica de modo algum que o mesmo ocorra com a renda.Uma vez que os investimentos tenham sido realizados, é sempre possível que os países ricos continuem a possuir os países pobres de forma permanente,chegando a alcançar proporções massivas, de tal modo que a renda nacional dos países ricos seja eternamente superior àdos pobres — que continuariam, para todo o sempre,a enviar uma parte do que produzem aos seus proprietários (como acontece com a África há muitas décadas). (p. 85)

Para determinar em que amplitude esse tipo de situação pode se produzir,veremos que é preciso comparar as taxas de retorno do capital que os países pobres devem desembolsar para os ricos com as taxas de crescimento de uns e de outros. (p. 85)

Em segundo lugar, do ponto de vista histórico, o mecanismo da mobilidade de capital não parece ter sido o fator que permitiu a convergência entre os países, ou, ao menos,não o fator principal. (p. 86)

Nenhuma das nações asiáticas que reduziram o atraso em relação aos países mais desenvolvidos, quer se trate do Japão, da Coreia e de Taiwan no passado ou da China hoje,se beneficiou de investimentos estrangeiros substanciais. (p. 86)

Basicamente, todos esses países financiaram os próprios investimentos em capital físico de que necessitavam e, sobretudo,os investimentos em capital humano — o aumento do nível geral de educação e formação —,cuja importância para o crescimento econômico de longo prazo foi respaldada por todas as pesquisas contemporâneas. (p. 86)

Em contrapartida, os países que são propriedade de outros, como na época colonial ou na África atual, não foram tão bem-sucedidos,muitas vezes porque se especializaram em setores produtivos de pouco futuro ou devido a uma instabilidade política crônica. (p. 86)

Não é de todo errado pensar que essa instabilidade se explica, em parte, pelo seguinte: quando um país é, em larga medida, posse de estrangeiros,a demanda social pela expropriação é recorrente e quase irreprimível.Outros atores do quadro político respondem que somente a proteção incondicional dos direitos de propriedade originais garante um ambiente adequado para o investimento e o desenvolvimento. (p. 86) ⭐

O país se encontra, desse modo, preso numa interminável alternância entre governos revolucionários (cujo sucesso na promoção de melhorias na qualidade de vida de seu povo é,muitas vezes, limitado) e governos que protegem os interesses dos proprietários existentes enquanto preparam a próxima revolução ou golpe de Estado. (p. 86)

A desigualdade da propriedade do capital já é algo muito difícil de aceitar e organizar de modo suave no contexto da comunidade nacional.No âmbito internacional, isso é quase impossível (a não ser que se imagine uma relação de dominação política do tipo colonial). (p. 86)

Evidentemente, a inserção internacional na economia global não é negativa em si: a autarquia jamais foi uma fonte de prosperidade. (p. 86)

Os países asiáticos sem dúvida foram beneficiados pela abertura internacional para reduzir seu atraso.Mas eles se apoiaram, sobretudo, na abertura dos mercados de bens e serviços e numa excepcional inserção no comércio internacional,não tanto na livre circulação dos fluxos de capital.

A China, por exemplo, pratica até hoje o controle de capitais: não se pode investir livremente no país, mas isso não impede a acumulação de capital,uma vez que a poupança interna é suficiente.

O Japão, assim como a Coreia e Taiwan, financiou o investimento usando os recursos de sua própria poupança. (p. 86)

Os estudos disponíveis mostram, também,que a maior parte dos ganhos provenientes da abertura do comércio internacional advém da difusão do conhecimento e do aumento dinâmico da produtividade que resultam da abertura,e não dos ganhos estáticos relacionados à especialização. (p. 86)

Em suma, a experiência histórica sugere que o principal mecanismo que permite a convergência entre países é a difusão do conhecimento,tanto noâmbito internacional quanto no doméstico. (p. 87)⭐

Ou seja, as economias mais pobres diminuem o atraso em relação às mais ricas na medida em que conseguem alcançar o mesmo nível de conhecimento tecnológico,de qualificação da mão de obra, de educação, e não ao se tornarem propriedade dos mais ricos. (p. 87)

muitas vezes ele é acelerado pela abertura internacional e comercial (a autarquia não facilita a transferência tecnológica) e, sobretudo,depende da capacidade desses países de mobilizar os financiamentos e as instituições que permitam investir vastos montantes na formação de seu povo,tudo isso sob as garantias de um contexto jurídico para os diferentes atores. (p. 87)