BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas ao mundo líquido moderno

Estranhas aventuras da privacidade

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Alain Ehrenberg, sociólogo francês e estudioso singularmente perspicaz da conturbada trajetória do indivíduo na modernidade, tentou situar a data de nascimento da revolução cultural moderna (ou pelo menos de seu ramo francês) que nos introduziu na era que ainda vivemos

escolheu uma noite de quarta-feira de outono, na década de 1980, quando certa Vivienne declarou durante um programa muito popular de entrevistas, pela televisão, na frente de milhões de telespectadores, que a maldita ejaculação precoce de seu marido, Michel, lhe impedira de ter um só orgasmo durante toda sua vida conjugal

Dois fatos são revolucionários na declaração de Vivienne

Tornar público um tipo de informação que até então era considerado a quintessência
da ordem do privado

Usar a arena pública para expressar e
discutir um assunto de interesse eminentemente privado

PRIVADO = Algo que pertence ao domínio da “privacidade”

ARENA PÚBLICA = Um espaço de acesso livre a todos os que quiserem
entrar.

“Privado” e “público” são conceitos antagônicos. Em geral, seus campos semânticos não estão separados por limites que permitam tráfego de mão dupla, mas por fronteiras demarcadas: linhas intransponíveis, de preferência fechadas com rigidez e pesadamente fortificadas de ambos os lados para impedir transgressões

Durante a maior parte da era moderna, o ataque à fronteira, e, mais importante ainda, toda mudança arbitrária e revogação unilateral das regras vigentes no tráfego entre fronteiras, foi quase exclusivamente esperado e temido no lado “público”

A tarefa que inspirou boa parte de nossos ancestrais e as gerações mais velhas a vigiar e partir para o combate foi defender o domínio do privado em relação à intromissão indevida dos detentores do poder

Comentando o sigilo (e, por extensão, privacidade, individualidade, autonomia,autodefinição e autoafirmação, pela simples razão de que o direito ao sigilo é um atributo fundamental, indispensável, de todas essas coisas), Georg Simmel, considerado o mais arguto dos fundadores da sociologia, disse que uma possibilidade realista de mudança exige que outros reconheçam o direito a manter segredos

O sigilo é uma proteção contra a divulgação não autorizada de informações, que estabelece, demarca e fortalece as fronteiras da privacidade; este é o espaço que quero preservar como domínio meu, o território de minha única e indivisível soberania, dentro do qual detenho o poder absoluto para definir “quem e o que sou”, o domínio a partir do qual posso desencadear a meu bel-prazer campanhas para que minhas decisões sejam reconhecidas e respeitadas

Numa surpreendente inversão dos hábitos dos nossos ancestrais perdemos de certa forma boa parte da coragem, energia e vontade para persistir na defesa da “esfera do privado”. Nos nossos dias, não é tanto a possibilidade de traição ou violação da privacidade que nos assusta, mas seu oposto: fechar todas as saídas do mundo privado, fazer dele uma prisão

É comum louvar ou acusar as inovações tecnológicas por estarem na origem das revoluções culturais

na verdade, as inovações conseguem no máximo desencadeá-las, oferecendo o elo que faltava numa cadeia completa de elementos necessários para deslocar a transformação nos costumes e estilos de vida existentes, da esfera das possibilidades para a esfera da realidade;transformação que já estava pronta há tempos e lutava para acontecer

O advento do celular tornou possível a situação de alguém estar sempre à inteira disposição do outro

Os telefones celulares são o fundamento técnico da suposição de constante acessibilidade e disponibilidade. A suposição de que a condição humana em geral da modernidade líquida, a condição de “lobos solitários sempre em contato”, já foi viabilizada e se converteu em “norma”, tanto no segundo quanto no primeiro aspecto

Os telefones móveis são peças básicas da construção de pequenos postos avançados públicos, espaços em que é possível disputar e fazer experiências com uma miniversão do status de celebridade, ser conhecido e visto numa área realmente “pública”

Entre as imagens das formas de união que a prática da telefonia celular substituiu ou eliminou, o conceito de “rede” sobressai principalmente por sua flexibilidade e pela ilusória adaptabilidade ao rígido manejo e monitoramento, bem como pelo rápido e indolor ajuste e pela reformulação

Uma rede de comunicação, ainda que em forma miniaturizada, possui todos os elementos que marcam um espaço público; porém, seu tamanho e conteúdo são construídos de acordo com as preferências e predileções do proprietário individual, são fáceis de “limpar”, bastando para isso pressionar o botão de “deletar”, apagando assim as partes que não correspondem mais aos interesses ou expectativas do dono

O resultado final de tudo isso é que os desafios da comunicação “de mim para ti, de nós para eles” parecem ainda mais desencorajadores e confusos; e a arte de lidar com eles parece ainda mais nebulosa e difícil de dominar do que na fase anterior, antes que começasse essa “grande revolução na conectividade humana”