A base dogmática do luteranismo exclui a mística; não pode haver união mística entre o pecador obstinado e confiante e o seu Deus, que só se revela na fé. Mas isso não exclui relações, por assim dizer, íntimas, como que familiares. A devoção luterana tem algo de intimismo pessoal, aproximando-se de certos sentimentalismos religiosos da Idade Média; só lentamente os luteranos conseguiram separar-se da mariologia, e Bernard de Clairvaux se conservou sempre, para eles, um nome caro. A religiosidade luterana é expressão fiel da vida luterana: pequenos-burgueses e camponeses, excluídos da vida pública pelas autoridades nas quais têm confiança absoluta, cumprindo religiosamente os deveres da sua profissão e da vida familiar, lendo de noite a Bíblia em presença dos filhos e dos criados; e no domingo, cantando na igreja os corais, acompanhados de órgão, que constituem a parte central da liturgia luterana. É uma literatura sui generis, a poesia lírica eclesiástica dos luteranos alemães665, feita para o povo e cantada pelo povo. Não pode exibir galas barrocas; retoma a tradição da canção popular alemã, do lied. Por isso, esses textos, expressões íntimas da alma alemã, são intraduzíveis; o que pode dar aos estrangeiros uma ideia deles é a música de Bach. Nas guerras da Contrarreforma, os protestantes deixaram-se matar “pela Bíblia e pelo Gesangbuch”; o “Gesangbuch” é a coleção das canções que se cantam na igreja luterana.
O fundador foi o próprio Lutero666: as suas 37 canções, na maior parte versões de salmos, não são obras de um poeta, mas efusões ocasionais, em língua dura e inábil que não revela o grande prosador, mas são sinceras, às vezes tão irresistíveis como a “marselhesa” da Reforma, o “Ein feste Burg ist unser Gott”, às vezes íntimas como “Vom Himmel hoch da komm ich her”, às vezes angustiadas como “Mit Fried und Freud fahr ich dahin”. Os primeiros versos de muitos corais de Lutero e dos seus sucessores são conhecidíssimos no mundo inteiro, porque deram tema e título às cantatas de Johann Sebastian Bach. Assim, “Allein Gott in der Höh’ sei Eher” e “O Lamm Gottes unschuldig”, de Nicolaus Decius (c. 1523); “Wachet auf, ruft uns die Stimme”, de Philipp Nicolai (1556-1608); “Wie schön leuchtet der Morgenstern”, de Josua Stegman (1588-1632); “Jerusalem, du hochgebaute Stadt”, de Johann Matthaeus Mayfarth (1590-1642); “Nun danket alle Gott”, de Martin Rinckart (1586-1649); “O Gott, du frommer Gott”, do vigário Johann Heermann (1585- 1647), ao qual o “Gesangbuch” deve mais canções do que a qualquer outro poeta da época. Alguns dos corais mais conhecidos são obras de príncipes, como “Herr Jesu Christ, dich zu uns wend’,” do Duque Guilherme II de Weimar († 1662), ou a popularíssima canção, usada na ocasião dos enterros, “Jesus, meine Zuversicht”, da princesa Luise Henriette de Brandenburgo (1627-1667); como para provar que a poesia luterana é obra da nação inteira, constituindo o “povo de Deus”.