O gnosticismo não é propriamente uma doutrina. Há uma infinidade de doutrinas gnósticas incompatíveis entre si. Mas existe um fundo comum que não é de ordem doutrinal. Mas, lembrando a lição de Friedländer, você tem de voltar das doutrinas às experiências originárias. Então, quando você não encontra uma unidade no campo doutrinal, pode ser que você encontre unidade no campo da experiência que originou essa diversificação doutrinal. O gnosticismo é a experiência da desordem, da desordem nua e crua, o caos, o terror, o pânico. No sentido do Millôr Fernandes: “Deus morreu, Marx morreu, e eu mesmo já não estou me sentindo muito bem”. Esta é a experiência gnóstica fundamental. E justamente da experiência da desordem sem a atenuação da fé — a fé não elimina a desordem, mas ela lhe dá um fio condutor, um tênue fio condutor no meio da desordem. Mas se você perdeu de vista a
recordação de Deus, você não tem mais em que ter fé. Então a palavra fé perde o sentido. Ou vai adquirir, como na modernidade, já depois de muito trabalhada e re-trabalhada, por camadas e camadas de autores gnósticos, o sentido de crença, crença em uma doutrina, o que é uma coisa inteiramente absurda! Primeiro, porque nenhuma dessas revelações aparece como doutrina. Elas aparecem como um apelo divino, como uma ordem divina dada a Moisés, ou sob a forma da existência, vida e paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. São fatos. E a fé é a fidelidade da recordação desses fatos, e não crença numa fórmula doutrinária. É uma coisa inteiramente absurda. Se o sujeito perguntar: “Você tem fé na doutrina?”. Eu não tenho fé nenhuma na doutrina! Eu tenho fé em Nosso Senhor Jesus Cristo, o que é uma coisa completamente diferente! A doutrina foi sendo desenvolvida pelas pessoas ao longo do tempo e tenta explicar em termos racionais aqueles acontecimentos, mas a doutrina em si mesmo é nada. A doutrina é apenas um discurso. Acreditar em um discurso ou outro, na prática, não vai fazer a menor diferença. O discurso que você mesmo elaborou para você explicar uma experiência da qual você não recorda mais não significa coisa nenhuma. O sentido da fé como crença em uma doutrina é um produto tardio e degenerado. É um produto tardio da própria degenerescência da cultura do Ocidente, e não precisamos levá-lo em conta. Pode esquecer isso aí. Trata-se da fidelidade a uma recordação. No sentido originário, não é nem mesmo fidelidade a uma recordação, é confiança numa presença: como Moisés confia na presença de Deus, e como aqueles cegos, aleijados, que foram curados por Jesus Cristo confiavam no poder que ele personificava. Aqueles personagens a toda hora estão dizendo: “Eu não posso me curar a mim mesmo, mas você é filho de Deus, então você pode”. Isso aí não é crença numa doutrina, mas crença num poder pessoal que está presente diante de você.